Sobre

Há alguns anos atrás, não sei precisar quanto tempo ao certo, era comum em reuniões familiares, o momento em que os álbuns de fotografia eram "vivenciados".


Uso o termo "vivenciar" por compreender que estes momentos iam muito além do simples gesto de ver ou rever fotos antigas. Imagens estas, que por si só, em sua frágil materialidade desgastada e amarelecida, já guardavam consigo uma carga simbólica imensa.


Cada retrato de um ente querido não mais presente, cada registro de batizado ou casamento, cada criança que posa sorridente sem qualquer pudor ao expor suas "partes", fazia reviver memórias e narrativas inteiras. Cada álbum de família era uma espécie de arquivo com pequenos fragmentos de memória de dezenas ou centenas de vidas, revividas na oralidade de cada interlocutor. Geralmente, cabia às mães e avós, a responsabilidade de serem as guardiãs destes arquivos de memórias vivas.


Lembro-me também dos banquetes que acompanhavam estes momentos, nos quais, além do café e leite quentes,

nunca faltava broa de fubá e biscoitinhos de nata!


Figurando entre os adultos, estava eu, de pés descalços, calções furados e mastigando de boca aberta, ávido por ouvir as histórias que cada um daqueles pedaços de papel velho era capaz de suscitar.


Mas, apesar desta breve introdução carregada de afeto e respeito à fotografia, eu estaria sendo desonesto se dissesse que sempre sonhei ser fotógrafo, ou ainda, que fui "influenciado" pela minha família para exercer tal ofício. Na verdade, durante boa parte da minha vida, isso nem chegou a ser cogitado.


Como a maioria das crianças com as quais convivi, não fui criado para ser um "sonhador". Nas famílias brasileiras mais humildes, sempre existiu uma espécie de "ceticismo" pueril e amargor no modo como vêm a vida. Creio que tal sentimento, em parte, seja fruto das agruras vividas em sucessivos períodos de crises e recessões.


Enfim, não tínhamos o luxo de sonhar com uma vida que fosse muito além da nossa realidade mais imediata. Fomos criados para sermos responsáveis, honestos, obedientes e, sobretudo, fortes.


Com base nessas premissas, fui crescendo, estudando e trabalhando naquilo que pintava. Afinal de contas, como era lembrado desde cedo, eu não tinha nascido "com a vida ganha"!


Ainda aos 7 anos, para ajudar a comprar meus materiais de escola (e, em segredo, chicletes que vinham com tatuagens), passei a vender pão na minha rua. Subia e descia a ladeira, enchendo os pulmões para bradar aos quatro cantos "Olha o padeirooo". Essa atividade, me rendeu o apelido de "padeiro". Apelido este, que até hoje é usado pelos moradores mais antigos do meu bairro. De lá para cá, passei por supermercado, padaria, McDonald's e, já na fase adulta, Operador de Telemarketing.


Cheguei também a quase me tornar um oficial da Guarda Municipal de Belo Horizonte. Na verdade, desisti após ter sido aprovado em todas as etapas. Estas duas últimas experiências foram cruciais para determinar uma mudança de curso na minha vida. Logo mais à frente, retornarei a este ponto.


Antes, preciso dizer que, ao longo de toda a minha adolescência e início da vida adulta, a fotografia esteve presente apenas naqueles momentos aos quais eu julgava serem dignos de ser "lembrados". E, quase sempre, estes coincidiam com os períodos de férias e viagens. Na minha bagagem, dois itens era indispensáveis: um rolo de filme ASA 100 de 36 poses e uma máquina Yashica, que sempre pegava emprestado com a minha mãe.


Tive a sorte de viver um período de surpreendente efervescência cultural em Santa Luzia. No início dos anos 2000, surgiram dezenas de bandas, grupos de rap, grafiteiros e coletivos de artistas que, por mais improvável que pareça, ajudaram a influenciar e formar o senso artístico e estético de alguns. Eu vivi ativamente esse período e meus tímpanos guardam algumas cicatrizes dele.


Ter estado em uma banda e vivenciado todo o processo de criação coletiva, ajudou a despertar a minha sensibilidade para as manifestações artísticas. Quem já teve uma banda de "garagem", sabe que todos os integrantes têm que atuar em diferentes frentes: desde o agendamento de apresentações e ensaios, assim como criando logotipos ou capas de "demo tapes".


Voltando agora às minhas atividades laborais, foi durante o período que eu trabalhava como Operador de Telemarketing que prestei o concurso para a Guarda Civil. E, enquanto eu me submetia aos diversos exames e provas, uma inaudita sensação de sufocamento me levou a questionar se era aquilo mesmo que eu queria para a minha vida. Meu desconforto aparente evidenciava uma resposta óbvia: um sonoro e reverberante NÃO.


Para a surpresa e descontentamento de alguns, para os quais eu era louco de abrir mão de uma carreira "sólida" de um agente da segurança pública, talvez o que mais os incucava era o por quê de eu estar fazendo aquilo. E, naquele momento, eu também não tinha essa resposta.


Ao tentar entender estas escolhas, fui aos poucos me reencontrando com a minha criatividade. Pois, não se tratava apenas de encontrar uma "profissão" ou fonte de renda, eu estava em busca de algo que me definisse como indivíduo, algo que traduzisse ou abrandasse a inquietação que eu sentia. Tais buscas me levaram a estudar Design, Produção Multimídia e Fotografia.


E foi o meu reencontro com a fotografia que me fez entender o que é ter prazer em fazer algo. Foi como se eu estivesse rememorando e resignificando todas as lembranças que aqueles álbuns de família já haviam me dado. Um reencontro com aquela máquina Kodak com a qual minha mãe nos fotografou por inúmeras vezes. Um reencontro com as memórias da minha família.


Desde este momento de redescoberta, lá se vão mais de 10 anos... mas parece que foi ontem. Há mais de uma década, venho exercendo o ofício de capturar e fixar fragmentos de momentos, que servirão como registros para as memórias vindouras de centenas de pessoas.


São incontáveis os sorrisos ou olhares que já registrei. São inúmeros os momentos de manifesta esperança e beleza, furtivamente captados pelas minhas lentes. No entanto, não tenho a intenção de fazer com que meus gestos me conduzam à posteridade, mas talvez eu já tenha contribuído para que muitos o façam.


As objetivas também já me deram a oportunidade de registrar documentários ("Olhar pela Natureza" e "Entre Lentes e Panos"), ter fotos minhas estampadas em capa de livro (Poesia Ponte Aérea, de Luiz Cláudio de Paulo), uma medalha de honra, concedida pela Liga Ecológica Santa Matilde e uma homenagem pela Academia Luziense de Letras e Artes (Aluz).


Por mais que eu trafegue ou visite outras áreas, sempre volto ao meu lugar de conforto. Pois a minha relação com a fotografia é bem mais profunda que uma atividade profissional, vai muito além daquilo que me é demandado por clientes.


Ser um fotógrafo me define. Ser um fotógrafo determina o meu papel no mundo. Quero transcorrer os anos que me restam, sentindo e colecionando fragmentos de vida.


Minha vida pelo belo texto do Alexandre Paz - Ilustrador, músico e Amigo.

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